domingo, 7 de junho de 2009

Zuze Bisgate. Logo na entrada do mercado, bem par baixo da grande pahama se erguia sua banca. Quando a manha ja estava em cima, Zuze Bisgate assentava os negócios. 0 Que ele fazia? Alugava bisga, vendia 0 cuspo dele. A saliva de Zuze tinha propriedades de lustrar sapatos.
- E melhor que graxa, enquanto graxa nem ha.
Alem disso, 0 preço dele era mais favorável. Cada cuspidela saia a trezentos, incluindo 0 lustro. Maneira como ele precedia era seguinte: 0 cliente tirava 0 sapato e colocava 0 pé empeugado do cliente sobre uma fogueirita. 0 Pé ficava ali apanhando uns fumos para purificar dos insectos infecciosos. Zune Biscate pegava no sapato e cuspia umas tantas vezes sobre ele. Cada
Cuspidela contava na conta. Passava 0 lustro com um pano amarrado no próprio cotovelo. Razao do pano, motivo de esfregar com 0 cotovelo:
- Dessa maneira a minha saliva me volta no corpo.
E que este nito e urn cuspe qualquer, urn produto industrioso desses. Nisto, isto e uma saliva bastantissima especial, foi-me emprestada por Deus, digamos foi un pequeno projecto de apoio ao sector informal. E que Deus conhece-me bem, pá. Eu sou um gajo com bons contactos lã em cima.
Os clientes não se faziam enrugados. As vezes ate abichavam frente da banca dele. Fosse da saliva, Fosse da conversa que ele lustrava. Verdade era que 0 neg6cio de Zuze corria em bom caudal.
Quem não se dava bem com os cuspes era sua mulher Armantinha. Não se pode beijar aquela boca engraxadora dele, se lamentava. Prefiro beijar uma bota velha, conclula. Ou lamber uma caixa de graxa.
Ar mantinha sonhava para saltar frustração. Um dia, qualquer dia, haveria de beijar e ser beijada. Sonhava e resonhava. Lhe apetecia um beijo, agua fazendo crescer outra água na boca. Lhe apetecia como um cacto sonha a nuvem. Como a ostra ela morria em segredo, como a pérola seu sonho se fabricava nos recônditos.
Avisaram 0 marido. Ar mantinha estava sonhando longe de mais. 0 Homem respondeu em variações. Beijo é coisa de branco, quem se importa. E depois, minha boca cheira a coisa jalecida. Quem se aflige com matéria mortal S6 os da cidade. N6s, daqui, sabemos bem: e do podre que a terra se alimenta. Acontece que Zune Biscate se foi metendo nos copos, garrafas, garrafões. Tudo servia de líquido, Zune destilava ate pedra. De toda a substancia se pode espremer Um alcoolismo, dizia. Mais e mais ele desleixava a caixa de cuspos e lustros. Ate que os clientes reclamaram: a saliva de Zune esta ganhando ácidos, aquilo bom e para desentupir as pias. E temendo pelos sapatos os demais se evitavam de frequentar a tenda banhada pela grande pahama.
Ate Chico Médio, homem sempre calado, reclamou que a saliva dele the fez murchar os atacadores, pareciam agora cobras sem esqueleto vertebral. Pouco a pouco Zune perdeu toda a clientela e 0 neg6cio das salivas fechou.º
Se decidiu entao a mudar de ramo. Recordou, de seu pai, a maxima: a alma e 0 segredo de um negócio.
Alma, era isso que se necessitava. E assim ele imaginou um outro neg6cio. E agora quem 0 ve, nos actuais dias, constata a banca com sua nova aparencia. E Zune mais seu novo posto. Seu labor e um quase nada, coisa para ingles nao ver.
Ali, na fachada, arrega~a as calças, com cuidado para nao as desvincar. Sempre com desvelo de burocrata,
Desembrulha um volume retirado das entranhas de sua banca: uma gaiola farrada a rede fina. Dentro voam moscas. Pois e 0 que ele vende: moscardos. Materia viva e mais que viva – vital para 0 mortal cidadão. Pois, diz o Biscate, cada um deve tratar as moscas que, depois
de mortos, nos visitariio 0 tIumulo.
- Sao os nossos ullimos acompanhantes.A pessoa passa par ali, se debru~a sobre 0 vendedor
e escolhem as voadoras bestas, as mais coloridas que engalanarao 0 funeral:
_ Esta ha-de ficar mesmo bem na sua cerim6nia.
Ele convida 0 hesitante cliente a if it banca ao lado, abanca da Dona Cantarinha. Para lavar as moscas, explica.
- Lavar as moscas?
- Sim, e lavagem a seco.
Ar mantinha cada vez mais se distancia daquela loucura.
0 marido se apronta e para grandes descansãos.
_ Ai nosso Senhor Jesus eristao.' Voce, homem, você vende alguma coisa?
- Faz as contas, mulher.
_ Que contas? Que contas se pode jazer sem numeros?
_ Ainda hoje vendi uma manada de moscas a esse tipo novo que chegou a aldeia.
- Qual que chegou?
_ Esse gajo que montou banca lã nas traseiras do bazar. Uma banca que ate mete as gra~as, chama-se Pinta-Boca•.
o homem se chama Pinta-Boca?
- Qual 0 homem.' A banca se chama.
Armantinha se inflama logo de sonho. Já a boca dela se liquides faz. Sua boca pedia pintura como a cabeça Ihe requeria sonho. E, logo nessa manha, ela ronda a nova tenda, se apresenta ao novo vendedor. Ele se declina:
- Sou julbemardo, venho de la, da cidade. Banca Pinta-Boca. 0 Nome faz jus. Na prateleira ele
Tem uma meia dúzia de batons com outras tantas cores. As mulheres se chegam e estendem os lábios. Julbernardo pede que escolham a coloração. Moda as brancas, vermelhas das beiças. Uma pintadela 250 meticais.
Amartinha, já devidamente apresentada, ganha coragem e encomenda uma colora dela.
- Aqui, se paga em adiantado.
Ela retirou as notas encarquilhadas do soutien. Vasculhou as largas mamas a procura dos papéis. Tinha seios tão grandes que nem conseguia cruzar os braços.
- Este aqui seu dinheiro.
- Não chega nem basta. Essa tabuleta do pregão era na semana passada. Agora e 250 um lábio.
- Um lábio?
- Se for 0 de cima, 0 de baixo custa mais caro. Porque e maior.
- Estou fracassada com você, julbernardo. Vá, pinte 0 de cima, amanha venho pintar 0 de baixo.
- Esta certo, eu vou pintar.
Julbernardo pegou no batom com habilidade de artista. Aquilo era obra para ser vista. Metade do povoado vinha assistir as pinturas. A gente seguia caladinha, aquilo era cena a prova de fala. Julbernardo metia um avental, ordenava a cliente que sentasse no tronco cortado do canhoeiro.
Armantinha obedecia ao ritual. Sentada, ergueu a rosto. Fechou os olhos, compenentrada em si. 0 pintador limpou as mãos no avental. Se debruçou sobre a tela viva e fez rodar 0 batom no ar antes de riscar a carne da cliente. Sentada no improvisado banco Armantinha deu largas ao sonho. 0 batom acariciava 0 lábio e tornava seu corpo misteriosamente leve, como se naquele
toque se anulasse todo 0 peso dela.
Sonhava Armantinha e 0 sonho dela se apoderava. Nesse devaneio 0 batom se convertia em corpo e já Julbernardo se inclinava todo sobre ela e os lábios dele pousavam sobre a boca dela, trocando húmidas ternuras. Mundo e sonho se misturavam, os gritos da multidão ecoavam na gruta que era sua boca e, de repente, a voz raivosa de Zune também Ihe esvoaça na Gabe~a. E eis que Arrnantinha' abre os olhos e ali, bem a sua frente, 0 seu marido se engalfinhava com Julbernardo. E murro e grito, com a gentalha rodopiando em voltaº. De repente, já urna deles se apresenta de desbotar vermelhos. Os dois se misturam e uma faca rebrilha na
mão de Zune. Depois, num saciio, se separam os dois corpos. Estiio ambos ensanguentados. Julbernardo com o avental ensopado de vermelho da dois passos e cai redondo. Num instante, uma multidão de moscas se avizinha. Zuze, vitorioso, aponta a mulher:
- Vê? Vê as moscas que vendi a esse cabrao?
Mas as moscas, em lugar de escolherem 0 tombado Julbernardo, circundam a cabe~a de Zuze. Alarmado, ele enxota-as. Em vao: ja a moscardaria Ihe pousa, vira e revira. Entao, Zuze Bisgate desce dos seus pr6prios joeIhos e se derrama em pleno chao. 0 sangue se ve brotar de seu peito. Julbernardo desperta e se ergue, ante o espanto geral. Com mão corrige a mancha vermelha com que 0 batom esmagado enchera 0 seu branco avental.




Resumo Gaiola de Moscas de Mia Couto

Zuzé bisgate tinha uma banca no mercado de engraxar sapatos, e limpava os sapatos aos clientes com o seu cuspo porque, dizia ele era melhor que graxa.
Cada engraxadela saia a trezentos escudos e enquanto ele engraxava os sapatos os clientes punham os pés ao pé de uma fogueira. Zuzé dizia que o cuspo dele tinha sido emprestado por deus, e que era um Homem com bastantes contactos no céu, mas os clientes não se importavam com o facto de ele engraxar os sapatos com cuspo, a excepção era a mulher de Zuzé, Armantinha que se lamentava por não poder beijar a boca cheia de cuspo do marido.
Avisaram Zuzé disto, mas ele dizia que, beijo era coisas de brancos.
Zuzé começou a meter-se nos copos, e estava sempre a beber, de tal maneira que os clientes começaram a reclamar que a saliva de Zuzé estava a ficar ácida, o que levou a Zuzé perder todos os clientes e a fechar o seu negócio.
Zuzé foi obrigado a pensar num outro negócio que era de cada pessoa tratar das moscas de depois de mortos, elas iam-nos visitar no túmulo e vendia as moscas que depois eram lavadas a seco.
A sua mulher estava cada vez mais preocupada com as ideias do marido.
Armantinha foi a banca de um vendedor que se chamava Julbernardo e que tinha vindo da cidade que vendia as coisas muito caras mas mesmo assim ela comprou e deixou o vendedor pintar-lhe os lábios e o vendedor acabou por a beijar, foi quando apareceu Zuzé começou a bater no vendedor e matou-o.
De seguida chegaram as moscas que ele lhe tinha vendido.

Estrutura

Exemplo de descrição:
“O cliente tirava o sapato e colocava o pé empeugado do cliente sobre uma fogeirita”
Exemplo de narração: “Até que os clientes reclamaram: a saliva de Zuzé estava ganhando ácidos ”
Personagens
Principal: Zuzé Bisgate
Secundário: Armantinha e Julbernardo
Composição das personagens
Personagem Plana: Armantinha e Julbernardo
Personagem Modelada: Zuzé Bisgate
Caracterização psicológica: As ideias de négocios que Zuzé teve no decorrer do conto põem em evidencia que ele é uma personagem criativa, imaginativa e lunatico
Espaço: “…logo na entrada do mercado”
Tempo: ”Quando a manhã…”
Narrador: Não participante heterodiegético


Trabalho realido por:
João Luís Tomé

quinta-feira, 4 de junho de 2009


A casa esta construída na duna e separada das outras casas do sítio. Esse isolamento cria nela uma unidade, urn mundo. o rumor das ondas, 0 perfume do sal, 0 vidrado da luz marinha, 0 ar varrido de brisas e vento, a cal do num, os nevoeiros imóveis, 0 arfar ressoante do mar estabelecem em seu redor grandes espaços vazios, tumultuosos e limpos onde tudo se abre e vibra.
A casa e construída de pedra e cal e a sua frente esta virada para 0 mar.No andar de cima da fachada a três janelas e uma varanda com grades de madeira. No andar de baixo a três janelas e uma porta. Essa porta, as janelas e as grades da varanda estão pintadas de verde. No chao, ao longo da parede, corre urn passeio de pedra que separa a casa das arcias da duna. Para aMm das dunas a praia estende-se a todo o comprimento da costa e só 0 limite do olhar a limita. E, de norte a sul, ao longo das areias, correm três linhas escuras e grossas de algas, búzios e conchas, misturados com ouriços, pedaços de cortiça e pedaços de madeira que são restos de bóias e de barcos. Sobre a areia molhada que a man: cheia alisou 0 poisar das gaivotas deixa finas pegadas triangulares, semelhantes Oi escrita de urn tempo antiqufssimo. As traseiras da casa dão para urn jardim inculto e rude e áspero onde 0 vento que dobra os arbustos se precipita e dança em volta do poço redondo.
o chao esta coberto de pequenas pedras soltas que rangem e saltam sob os passos. Presa num arame a roupa lavada a secar ao sol estala e palpita como as velas de urn navio. A norte, a leste e a sul 0 jardim e limitado por três muros toscos feitos de calhaus de granito sem reboco. No muro do fundo, que da para a rua deserta onde os plátanos sonham devagar a própria sombra, ha uma cancela que continuamente bate e gira e geme no vento.
Vai-se escangalhando dia a dia e, quando os gonzos rebentarem, ficara muito tempo cafda no chao sem que ninguém a apanhe. No lado poente, onde os dias duram e Illzem e se arrastam, 0 jardim avança pela duna e
confunde-se com a praia, apesar dos pilares de granito que marcam os seus limites. Dali se avista, para 0 sul, no extremo da distancia, para la da foz do pequeno rio onde a costa se encurva levemente, uma cidade que vern ate Oi
orla do mar. 0 seu recorte esfuma-se urn pouco nas névoas marítimas mesmo quando 0 tempo este radioso. Porem, em certos dias, a cidade de repente torna-se extremamente nítida e concisa, quase geométrica, e ve-se claramente a torre aguda e fina da igreja. Entao sabe-se que vai chover.
Entre a casa e a cidade longínqua estendem se as dunas como urn grande jardim deserto, inculto e transparente onde 0 vento que curva as ervas altas, secas e finas faz voar em frente dos olhos 0 loiro dos cabelos. Ali crescem também os Rios selvagens cujo intenso perfume, pesado e opaco como 0 perfume de urn nardo, corta 0 perfume árido e vítreo das areias. Dentro de casa 0 mar ressoa como no interior de urn búzio. Quando abro as gavetas a minha roupa cheira a maresia como urn molho de algas. Profundos os espelhos reflectem demora lamente os dias. E em frente das janelas 0 mar brilha como inumeráveis espelhos quebrados. Os m6veis são escuros e finos, sem'verniz, encerados. 0 chao esfregado, as paredes caiadas. Em todas as coisas esm inscrita uma limpeza de sal. A exalta9ao marinha habita 0 ar. A casa e aberta e secreta, veemente e serena. Nela 0 menor ruído - tinir de IOU9a, degrau que range, respira9ao do vento, comboio que ao longe passa e escutado. A casa esta atenta a cada coisa.
Todos os dias a renovam. A mais leve nuvem que passa ensombra 0 vidro dos espelhos. Nela cada dia e único e precioso como se contivesse a totalidade do tempo. No brilho da mesa, na transparência do copo, ha como que uma intensidade repousada. Quem chega pelo lado de trás da casa entra num corredor largo onde ha urn grande armário de madeira escura no qual estão guardadas loi9as. A direita, depois da copa, fica a cozinha onde uma pequena mulher temível reina em frente ao fogo. A cozinha e 0 antro da casa. E escura no interior da casa branca. Nela secam as ervas e as chaleiras gemem e solu9am como se sofressem. Apesar do fresco cintilante dos peixes, apesar do vermelho das carnes, apesar do amarelo dos lim6es, do verde polido dos pimentos empilhados no prato de barro, apesar do orvalho das manhas que treme ainda na dureza tenra das grandes couves redondas e fechadas, a cozinha, com seus ferros, suas chamas, suas facas agudas, seu cantar de chaleiras, seus fumos, seu frigir de 6leos, seu cheiro de amêndoa, gordura, fogo e fruta, terno algo de inquietante que acompanha 0 longo catalogo de malefícios, desgra9as, acidentes, doen9as, perigos, prenúncios e amea9as suspensas que a pequena mulher temível continuamente recorda em frente do fogo. A esquerda da copa, no lado da casa que da para a praia, fica a sala de jantar. Tern no meio uma mesa comprida rodeada de cadeiras e em cada ângulo dos muros pequenas cantoneiras de madeira. No centro da mesa ha urn fruteira redondo
onde ma9as vermelhas se recortam sobre a madeira escura e contra a cal das paredes. Polidas e redondas as ma9as brilham e parecem interiormente acesas, como se as habitasse 0 lume de uma intensa felicidade a qual responde o luzir do mar cujo azul cintila entre as persianas. E, quando as vidraças esUio abertas, 0 perfume seco das dunas mistura-se com 0 perfume das ma9as. Da sala de jantar passa-se para uma sala quadrada onde ha uma porta que da directamente para 0 patamar de pedra que confina com a duna. Quem vern de fora sacode os pés antes de entrar para niio encher a casa de areia. Ali as cadeiras de vime pintadas de castanho quase preto fazem urn círculo aroda da mesa baixa onde 0 cigarro poisado no cinzeiro arde sozinho ao lado de uma jarra cheia de dálias vermelhas. Nesta sala reinam as fotografias. Cercadas pelas molduras de prata, ora ovais ora redondas, ora rectangulares, as fotografias estabelecem, dentro do tempo, outro tempo, e, dentro de casa, outras casas e lugares e jardins. Verdes jardins sombrios e secretos cujo sussurrar se funde no silêncio. Largas salas de muros claros com mobílias império e cortinados brancos, onde respira a brisa. Claras varandas debru9adas sobre 0 tanque rodeado de vasos. Salas, varandas, jardins habitados por personagens que são, todos eles, estranhamente belos: como se 0 seu corpo fosse a sua alma. Talvez a arte do fot6grafo os tivesse idealizado, talvez o tempo tivesse feito uma escolha, ou talvez que, nessa época, s6 as pessoas belas fossem fotografadas. No papel semi-brilhante e serni-ba90 das fotografias pessoas e lugares, como se 0 tempo ali fosse outra coisa, vivem, sem cessar, a paixão e veemência do instante objectivo: a mao polida pela penumbra e pela luz e que docemente poisa sobre a mesa, 0 perfil sereno e claro com 0 cabelo brilhando sobre 0 vestido escuro, 0 colar de contas grossas em redor do peSC090 fino, a pedra da escada, a sombra da tília sobre os ombros, a hera cobrindo 0 granito do muro, 0 longo corredor que tern, ao fundo, uma área de cânfora sob 0 quadro do homem a cavalo, 0 quarto onde 0 rosto emerge branco da sombra, enquanto 0 espelho, ao fundo, mostra 0 outro lado do perfil. A parte de trás da casa forma urn L pois c lado sul se prolonga numa ala formada por quatro quartos dispostos ao longo do corredor que contorna a casa. Das janelas desses quartos virados para 0 sul nao se vê 0 mar: ve-se a chorona de grossos dedos verdes e de flores amarelas e roxas que cresce no jardim de areia, ve-se 0 muro de granito e, para hei do muro, a duna onde as ervas secas e transparentes desenham 0 ar e, aqui e alem, ao longe, se avistam telhados, e se ouve, solitário, 0 ladrar dos cães. No andar de cima, mais pequeno do que o andar de baixo, ha s6 quatro quartos. Para eles se sobe pela escada de madeira que estala e canta sob os passos acompanhando as idas e vindas da casa. o quarto que fica ao cimo da escada, a esquerda de quem sobe, e urn quarto pequeno onde a cama enche a parede do fundo, e a c6moda ocupa, quase por inteiro, a parede que fica ao lado da porta e em frente da janela. Por cima da c6moda ha urn espelho onde se vê 0 mar. A cama e a c6moda são m6veis antigos,amplos e pesados e atravancam urn tanto 0 quarto onde nao ha muito lugar para 0 movimento das pessoas. E urn quarto para dormir ou para longas sestas semi-acordadas em tardes de Agosto e nortada, quando 0 vento cintila, 0 sol cintila e a portada verde bate. Quando esta frio corre-se 0 vidro da janela de guilhotina e entao o exterior parece nebuloso e fosco porque os vidros entre os caixilhos de madeira estão picados e despoluídos pelo l110rder do sal. No fundo do corredor, no outro extremo desse andar, ha urn quarto grande e comprido, orientado de este a oeste no sentido do comprimento, e todo atravessado pela (Hz que vern do mar. E urn quarto simultaneamente luminoso, esverdeado e sombrio. Nas suas penumbras brilham pontos de oiro. E PCI reflexos vagabundos que vagueiam entre loi9as , vidros, pratas, espelhos. No ar paira 0 perfume que sobe de urn frasco de vidro doirado e preto que alguém deixou destapado. Uma nuvem de fume azul sobe muito lentamente. 0 quarto esta chie{) de livros empilhados nas mesas, na estante e mesll10 nas cadeiras. Livros de capas amarelas e brandas e cinzentas. Alguns, dobrados ao meio, mostram a cor de trigo do papel e 0 desenho contínuo e serrado das letras. o quarto tern algo de glauco e de doirado como se nele morasse uma mulher de olhos verdes e cabelos loiros, leves e compridos, de urn loiro brilhante e sombrio, e cujo perfume e 0 perfume do sândalo. A beleza da sua testa e grave como a beleza da arquitrave de urn templo. Nos seus pulsos hei! urn quebrar de caule. Nas suas maos, através da finura da pele e do azul das veias, 0 pensamento emerge. Nesse quarto se vê a pausa em 'que 0 instante, de súbito, surpreende e fita e enfrenta a eternidade. E ali se vê 0 brilho vivo que navega no interior da sombra. Ali se ouve a linguagem que, como nenúfar, aflora a tona das águas paradas do silêncio. Porque 0 quarto sussurra como se fosse 0 interior de uma tília onde palpitam miríades de folhas verdes cujo reverso e branco e que batem como pálpebras, ora revelando ora escondendo 0 interminável brilho dos olhos magnéticos, verdes, cinzentos, azuis e desmesurados como mares. Ali 0 ar, em frente dos espelhos, oscila e parece arder como se as maos, macias como pétalas de magn6lia, alisassem e torcessem longas madeixas de cabelo denso como searas e leve como 0 fogo. No entanto, as vezes 0 espaço torna-se achai apaixonadamente vazio, como se apenas a povoasse urn longo e mon6tono e alucinado mar e tudo fosse impossibilidade, separação e distancia, ou como se aquele quarto fosse 0 umbral do vazio, do indizível, da solidão total, do caos, da noite, do indecifrável. E ali que, nas noites de vento sue, incide com mais forca 0 clamor do temporal. Entao, as vezes a janela abre-se de repente e 0 cheiro das flores selvagens da duna passa através da casa. Esse quarto grande e comprido comunica com urn quarto pequeno e quadrado, onde a parede da esquerda esta quase totalmente ocupada par urn toucador de mogno e mármore que tern, no centro urn grande espelho oval. No toucador reinam os boi6es e os frascos, as escovas e os pentes. A 0 frasco de vidro dentro da caixa verde, a caixa de loiça, a tesoira, 0 anel esquecido, a exare cafda. Quem sai do quarto do fundo e espreita pela janela do corredor que da para 0 pátio das traseiras vê, la fora, os dois perdigueiros que erguem a cabeça quando alguém, com 0 n6 dos dedos, para os chamar, bate nos vidros. Entre 0 quarto do fundo e a escada, exactamente no centro da casa, fica 0 quarto que da para a varanda de madeira pintada de verde. Nesse quarto os m6veis - 0 diva, a mesa estreita e baixa, a pequena c6moda com 0 espelho, 0 armário - estão encostados a parede e o quarto tern, no centro, em frente do espelho, urn espace;:o livre como urn palco onde a luz, 0 nevoeiro e os gestos dance;:ma. Sobre a mesa verde, ao lado dos cadernos de capa de oleado, onde, na leve escrita acinzentada do lápis, as palavras se alinham dia ap6s dia como se emergissem dos dias, esm uma jarra de vidro coalhado azul cheia de cravos cujo perfume se recorta, nítido e delimitado, no perfume salino do ar. Nas paredes brancas reflecte-se uma grande claridade de areal e 0 sabor a algas, como urn grito de contínua alegria, invade todos os espace;: os, gavetas, armários, roupas, caixas, livros. Aqui, de manha, se e acordado por urn marulho de vaga e 0 dorso do mar coberto de brilhos cintila entre as persianas como urn peixe na rede. 0 fulgor exterior assedia as orlas da penumbra. No centro vazio do quarto pode-se dance;:ar. Os gestos deslizam entre 0 animal e a flor como medusas. E, as vezes, de súbito, uma gaivota atravessa, sem 0 quebrar, 0 vidro dos espelhos. Porem, como urn jardim Zen, 0 quarto e também urn lugar de contemplas;:ao. A luz Elisa. 0 espace;:o esta atento, 0 silêncio imóvel. Mas esse silêncio e essa aténs;:ao recebem em si a larga respiras;: ao oceânica que no quarto implanta seu tumulto ébrio e lúcido. A na casa algo de rude e elementar que nenhuma riqueza mundana pode corromper, e, apesar do seu halo de solidão e do seu isolamento na duna, a casa nao e margem mas antes convergência, encontro, centro. Quem nas janelas do corredor olha para fora e vê 0 muro de granito, as arvores na distancia e os telhados a oeste, aquilo que vê aparece-lhe como urn lugar qualquer da terra, como urn acidente, urn lugar ocasional entre 0 acaso das coisas. Mas quem do quarto central avança para a varanda efe, de frente, a praia, 0 céu, a areia, a luz e 0 ar, reconhece que nada ali e acaso mas sim fundamento, que este e um lugar de exaltação e espanto onde 0 real emerge e mostra seu rosto e sua evidência. Pelo gesto de dobrar 0 pescoço e de sacudir As crinas, as quatro fileiras de ondas, correndo para a praia, lembram fileiras brancas de cavalos que no continuo avançar contam e medem o seu arfar interior de tempestade. 0 Tombar da rebentação povoa 0 espaço de exultação e clamor. No subir e descer da vaga, 0 universo ordena seu tumulto e seu sorriso e, ao longo das areias luzidias, maresias e brumas sobem como um incenso de celebração. E tudo parece intacto e total como se ali fosse o lugar que preserva em si a força nua do primeiro dia criado.
Resumo

A casa do Mar
É feita uma descrição de uma casa construída numa duna de uma praia e que estava voltada para o mar e também é feita uma descrição da praia.
A praia estava cheia de conchas e de algas e também de restos de barcos e as gaivotas poisavam na areia.
Nas Traseiras da casa havia um jardim que avançava para poente pela duna e dentro de casa o mar ressoava como num búzio.
Quando o narrador abriu uma gaveta cheirava a maresia e a casa era serena pois quase nunca se ouvia barulho.
Quem ia aquela casa entrava por um corredor onde havia armários de loiças e a escura cozinha e ao lado da cozinha a sala de jantar com uma mesa rodeada de cadeiras, da sala de jantar passava-se para uma sala quadrada com uma porta para a duna e essa sala estava cheia de Fotografias.
A parte de trás da casa formava um L porque a Sul prolonga-se formada por quartos de onde se via o jardim.
O andar de cima era mais pequeno do que o de baixo por onde se ia por uma velha escada de madeira e onde o quarto à esquerda era um quarto pequeno onde a cómoda ocupa quase toda a parede no fundo do corredor há um quarto grande e luminoso e que esta cheio de livros mas muitas vezes torna-se vazio e é ali que incide com mais força o clamor da tempestade.
Aquela casa tem algum ar de rude.
Neste conto a narradora faz-nos uma descrição de uma casa que pelo sentimento que mete nesta descrição, esta será uma casa com que a narradora nutrira algum sentimento.


Estrutura

Exemplo de descrição: “A casa está construída na duna e separada das outras casas do sítio”
Exemplo de narração: “Quando abro as gavetas a minha roupa cheira a maresia com um molho de algas”
Personagens Principal: narradora
Composição das personagens
Personagem Plana: narradora
Caracterização física: “A parte de trás da casa forma um L”
Caracterização psicológica: “Há na casa algo de rude e elementar”
Espaço: “A casa esta construída numa duna…”
Narrador: Participante – Autodiegetico “Quando abro as gavetas…”

Trabalho realizado por:
João Luís Tomé

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Era a vez do Luciano. Curvou-se, pôs 0 joelho em terra e apontou 0 berlinde. Atento, Júlio esperou. Mas o golpe demorava. Luciano parecia alhear-se cada vez mais da jogada, como se escutasse qualquer ruído distante. Acabou por erguer a cabeça.
Estrada abaixo, Lena corria de braços abertos. Vinha de sapatos pretos, meias pretas, bibe preto. E, sobre os cabelos claros, um grande laço preto. Toda ela vestia de luto carregado. Mas os seus movimentos eram leves e cheios de vivacidade. Passou, sentindo 0 prazer da corrida, airosa e veloz. 0 vento abriu-lhe 0 bibe e, por momentos, apareceu a descoberto 0 colo muito branco que formava com 0 rosto uma mancha alva no meio do luto.
- Parece uma andorinha - disse Júlio.
Os dois garotos iam virando a cabeça e seguiam-na com os olhos. Nenhum sabia aD certo se ela os vira, embora a ambos parecesse que Lena os havia olhado de soslaio.
Luciano continuava de joelhos no p6 alvacento do largo. Sempre a correr, Lena ia agora saltando, Ora sobre urn pé, ora sobre 0 outro. Por fim, desapareceu na curva da rua, a caminho de casa da madrinha.
Luciano voltou-se. Apontou 0 berlinde entalado entre os dedos, desfechou 0 golpe, e falhou. Júlio, já de joelho no chão, preparava-se para jogar, quando Luciano levantou' a pequena esfera e disse:
- Não jogo mais.
Júlio, viu-o ir sentar-se sombra. Aproximou-se:
- Ficaste zangado, hem?
-Eu?
- Pois! - Acrescentou Júlio. - Ela passou sem
olhar para ti.
- Quero mais saber disso!
- Então porque deixaste de jogar?
Luciano olhou-o de revés, por cima do ombro. Mas nada respondeu. Esticou as penas, foi-se voltando, e acabou por ficar estendido sobre 0 passeio, com 0 queixo encostado nos punhos. Júlio curvou-se e começou a desenhar com 0 dedo sobre 0 pé do largo. Parecia completamente absorvido. Súbito, a mão parou-lhe:
- Não te percebo. Ela anda sempre tua volta, e tu corres com ela; agora, que passou sem te olhar, ficaste danado.
- Fiquei nada! - Cortou Luciano.
Júlio sorriu com tristeza:
- Bern vi que ficaste.
Voltou a correr com 0 dedo sobre 0 p6:
- Se fosse comigo, jll eu a namorava.
-Tu?
- Sim... E bern bonita, a Lena....
Luciano ergueu 0 tronco, recolheu as pernas, e sentou- se:
- Se achas que ela e assim tao bonita, porque e que nao a namoras?
Julio curvou-se ainda mais para 0 chao:
- Ela gosta de ti. ..
- Quem te disse isso?
- Ninguem - respondeu Julio, encolhendo os ombros. - Mas ve-se muilo bern.
- Nao... - murmurou Luciano, logo acrescentando, com vivacidade. - Nao, eu nao gosto nada da família dela. Ruma gente que nem eu sei!
- Mas que terno que ver com isso a família dela?
- Tern muito. Uma pessoa ou gosta de uma família toda ou nao gosta de ninguem dessa famHia. Julio esqueceu os desenhos sobre a poeira.
- Mas, eu... - come~ou ele, hesitante -, eu não gosto nada da familia da Lena, e gosto dela.
- 1sso es tu.
E Luciano, com urn ar superior, voltou a estender- se ao comprido sobre 0 passeio. Urn carreiro de formigas passava-Ihe perlo do nariz - e, como Julio nada mais dissesse, entretido a riscar de novo 0 p6, Luciano pos-se a observar as evoluyQes das forrnigas. Assim estavam, quando Lena apareceu. Corria como se fosse direitinha para casa, mas, dando uma Larga viragem, começou a andar as voltas pelo largo. Júlio seguia-a com os olhos. Luciano olhava para 0
carreiro das formigas. Lena ia abrindo cada vez mais os círculos; passava agora muito perto do passeio. No entanto, fazia-o Como se não desse pela presença dos rapazes. Pulava, abria os braços, rodava sobre os calcanhares, ora vagarosa, ora nítida. Tudo isto parecia ser feito com urn fim especial. Mas, como não alcançasse nenhum resultado, Lena, ao descrever a ultima volta, quase pisou 0 carreiro das formigas.
- Olha! - exclamou ela, numa exagerada surpresa.
- Urn carreiro de formigas!
- E das grandes! - disse Júlio, rapidamente.
Luciano continuava a olhar para as formigas. Lena curvou-se, cruzando os braços atras das costas:
- Essas são das que mordem, não são?
- Sim - respondeu Júlio - mas não d6i nada.
- Mordem muito, não e? - repetiu Lena, sem tirar os olhos de Luciano.
Júlio voltou 0 rosto e pôs-se a olhar em frente. Luciano continuava im6vel, de pálpebras caídas. Lena estendeu 0 bra90 e Luciano viu-lhe 0 dedo esticado aproximar-se, a medo, do carreiro. Ergueu a cabeça:
- Que queres tu daqui? Vai-te embora.
. - Nada... eu não quero nada - respondeu Lena endireitando 0 busto, sem se afastar. - Estava a ver as formigas ...
Luciano levantou-se:
- Já te disse que te fosses embora.
Lena ergueu para ele os grandes olhos azuis. Depois baixou a cabeça; 0 enorme laço preto pendeu-lhe para a testa de mistura com os carac6is. E, muito vagarosamente, de braços caídos, afastou-se, a caminho de casa. Apesar de todos os motivos invocados e ate, por fim, da recusa formal, a av6 não cedeu e Luciano teve que acompanha-la. Ia desesperado. Não gostava nada de fazer visitas e, agora, a av6 levava-o, a viva for9a, aquela casa onde nunca entrara, a visitar uma gente que, embora somente conhecesse de vista, tão antipática lhe era! Durante 0 trajecto, tomou uma resolução: apenas daria as boas-tardes, nem mais uma palavra. Depois do largo, avistou a casa, urn antigo e enorme prédio, meio em ruínas. Erguia-se, desamparado, no meio dum quintal cujo muro havia derruido com 0 tempo. As paredes sujas e carcomidas, de janelas
sempre cerradas, vidros poeirentos, aumentavam-lhe ainda mais 0 sombrio ar de abandono. Desprendia-se de todo 0 edificio urn tao misterioso e recolhido silencio que, na ideia de Luciano, la por dentro, atraves de tenebrosos corredores, Lena, vestida de luto, errava, aterrada, constantemente perseguida pelo severo olhar dos pais. Ao chegar junto da porta, enquanto a av6 erguia 0batente, pensou fugir. Voltou-se, abriI1do os braços – mas uns dedos secos poisaram-Ihe sobre os ombros; a voz sibilada da av6 fe-Io estacar:
- Luciano!
A porta descerrou-se, gemendo. E Luciano entrou pela primeira vez na casa de Lena. Pelo corredor escuro, onde os passos se sumiam, abafados, uma velha de rosto meio oculto no lento
negro levou-os para a sala. - Vou avisar os senhores. E desapareceu, sem ruido, toda curvada.
Luciano sentou-se, inquieto, como se tivesse passado subitamente do dia para a noite. Quando se habituou 11 pouca luz, ergueu-se, olhando em volta, tornado de Surpresa. Nesse instante, os pais de Lena entravam, seguidos pela filha. Luciano disse:
- Boa tarde.
Baixando a cabeça, tomou a sentar-se. Enquanto falaram dele nao mudou de posi~ao. S6
muito depois, quando a conversa incidia sobre outro assunto - a av6 pedia desculpa de a tanto tempo ali nao vir - pensou que era altura de olhar de novo para as paredes e para 0 chao. Pensou também que devia faze-lo com cautela, de modo que ninguém desse por isso. Mas, por mais cuidados que usasse, tinha a certeza de que Lena havia de estar a olhar para ele. Começou a erguer 0 rosto vagarosamente. Uma profusão de objectos que nunca vira enchiam as paredes. Zagaias cruzavam-se por todos os lados, aqui e alem, lanças compridas e ferrugentas, escudos
redondos, pretos, com embutidos vermelhos, penachos amarelos, armados sobre tiras de coiro, catanas recurvas, mocas. No chão, figuras agressivas, talhadas em troncos negros, com olhos de vidro, oblíquos. A pr6pria mesa, escura, de pés retorcidos, gordos, era pesada, sotuma. E, na obscuridade, evolava-se de tudo aquilo uma distante e terrível ameada. Obcecado pelo estranho encantamento, Luciano, a pouco e pouco, caiu numa grande lassidão; olhava para tudo como se sonhasse. Cada vez mais ia avolumando a vaga sensação de qualquer coisa sem principio nem fim - dir-se-ia que 0 tempo tinha parado para sempre naquela casa. E, na penumbra, como que vinda de longe, a voz do pal de Lena chegava-Ihe agora aos ouvidos, muito branda e muito nitida:
- Sinto ainda, como se fosse neste momento, a morte de todos eles ... E tudo tao de repente; meus irmaos, meus pais, os meus filhos, os meus pobres filhos ... Todos se foram, todos ...
- Eduardo - pedia suavemente a mUlher – não te mortifiques ... ....: Mas, Maria, tu sabes bern que penso neles a toda a hora. Logo se tomou quase incompreensfvel a Luciano tudo quanto diziam; apenas adivinhava, no murmtlrio arrastado das palavras, urn lento, longo di<1logo de recorda6es. A custo, volveu a cabe~a, procurando Lena pela sala. Ela estava sentada entre 0 pai e a mae, e 0 seu rosto claro sobressafa, num sarrisa. Luciano serenou. Mas, de stlbito, viu quanto eram velhos as pais de Lena. A mulher estava cheia de rugas, a homem tinha as cabelos brancos.
- 8im, sim ... - dizia a av6 naquele instante que grande saudade eu tenho desse tempo ...
- Como tudo passa... - disse 0 homem.
- Tudo... - murmurou a mae de Lena.
Pelo canto dos olhos, Luciano espreitou a escultura que Ihe ficava mais perto. Foi voltando 0 rosto ate a olhar de frente. Par muito tempo, ficou preso do homllncuJo de madeira negra, rugosa. Custou-Ihe desviar a vista. E, quando 0 conseguiu, ainda trazia nos olhos aquela expressao implacavel, a um tempo feroz e repousada. Viu 0 pai de Lena levantar-se, ir a um canto e arrastar, com grande esfor90, uma enorme caixa preta que ro9ava pelo chao com um ruldo gemebundo.
- E melhor nao, Eduardo... - ciciou a mulher.
- Nao faz mal. Apenas urn pouco, nao faz mal respondeu ele. E, voltando-se: - Lembra-se?
Luciano nem ouviu a resposta da av6. lnquieto, nao despegava os olhos da alta caixa negra. 0 pai de
Lena abra9ava-a com tanta lristeza como se dentro estivesse a cadaver de um ente querido. Abriu-a cuidadosamente, puxou para fora um objecto que Luciano desconhecia e, sentando-se, inclinou-o para 0 peito. o homem concentrou-se, de olhos semicerrados. Estendeu a mao, e feriu uma das cordas metaUcas alinhadas de alto a baixo. Um sam claro repercutiu na sala. Logo outro se seguiu, espa9ado. Outro sOOU. E, lenta, uma harmonia alongou-se, sonora e grave. Era qualquer coisa de muito triste e dolorosa para a pai de Lena; a pr6pria lentidao dos gestos a tornava mais desolado.
Parecia que nada poderia impedir tanta amargura. Nada. Estava de cabe9a calda, as dedos iam desfiando a desgosto, urn· frio e duro desgosto - quando a outra mao correu, rapida, sobre as cordas. Fez-se urn sussurro suave, de notas limpidas, uma fugaz alegria que, mais altos, as tons graves apagaram. Mas, de novo, a sussurro voltou, tornou-se nftido. E correu, livre, como uma alegria que transborda e se salta. A agua de urn rio deslizando ao sol, sabre pedras brancas. Uma dan9a de raparigas, risos, labios vermelhos. 0 homem mexia nervosamente as dedas, sacudia a cabe9a, quando a amarga tristeza voltou, ressoando passo a passa . Mas jll com ela se misturava a alegre sussurro. E mor, la: apenas a saudade ecoava. Uma profunda saudade. Entao, a pai de Lena, desnorteado, come90u a misturar tudo: alegria e dor, desola9ao e esperan9a. Tlrava das cordas tudo quanto the afogava a cora9ao. Ansiado e desorientado, enrodilhava as dedos. E ia ficando s6 a dor e a aJegria. A dar e a alegria em todas as cordas. Urn enovelado de sons cada vez mais alto, como se alguem chorasse. Urn choro de dar e de alegria que repentinamente se calou, com urn grande solU90 morrendo pela sala. Luciano .estava de pe, maos soerguidas. No rosto afogueado, as olhos negros, parados,
No outro dia, ao sair da escola, Luciano largou a correr e s6 parou em casa. Foi ao quarto, abriu a arca, e tirou la do fundo urn velho punhal de cabo recurvo, negro com embutidos doirados. Apertou-o carinhosamente entre as maos, como se acariciasse um tesoiro. Era a sua maior fortuna. Fora do avo 0 punhal, e Luciano apenas consentira em mostra-Io a raros amigos. Olhou-o de novo com ternura. Rápido, meteu-o debaixo do bibe, entalado
entre 0 cal9aO e a camisa, e desandou para 0 largo. Ao ve-Io chegar, Julio desafiou-o:
- Queres jogar it malha?
-Nao.
- Entao, jogamos ao berlinde.
- Tambem nao.
Julio fitou-o, admirado. S6 entao reparou que 0 amigo olhava para a casa de Lena. Foi sentar-se na beira do passeio. Dai observava Luciano 'e parte da estrada. Ao sentir-se espiado, Luciano atravessou 0 largo e sentou-se no passeio fronteiro. Mas ergueu-se logo. Lena acabava de sair de casa e abria os bra90s, correndo, estrada abaixo. Cada um do seu lado, os dois garotos viram-na entrar no largo, passar, e foram voltando a cabe9a ate a deixarem de veL Ambos pensaram que ela devia estar, agora, a bater it porta da casa da madrinha. A espa90s olhavam-se disfar9adamente. Dai a pouco, Lena voltou, caminhando a passo.
Luciano levantou-se:
- Ola, Lena!
A rapariga estacou, surpreendida. Compos 0 la90 negro, e aproximou~se, muito seria:
_ Ola, Luciano.
No outro lado, junto das faias, Julio ergueu-se. Com urn olhar magoado, observou-os. Depois, afastou- se e saiu do largo. Luciano olhava para 0 chao:
_ Queria pedir-te uma coisa...
- Que e?
_ Tu fazes 0 que eu te pedir?
Luciano fitou Lena nos olhos. pos-lhe a mao no ombro:
_ Entao, vern dai comigo.
Avançaram peia estrada..Em frente da velha casa, Luciano meteu a mao debaixo do bibe e tirou 0 punhal:
_ Toma, Lena. Epara 0 teu pai. Ele pode po-Io la nas paredes, junto dos outros.
Lena hesitava.
_ Leva-Iho! _ ordenou Luciano. - Eu ja gosto do teu pai. A rapariga obedeceu. la a chegar junto da porta, quando Luciano a chamou:
_ Tambem quero dizer-te uma coisa... Tinha 0 rosto vermelho. Mas, ganhando coragem, ergueu a cabe9a e disse:
_ Gosto muito de ti.
E Lena, com 0 punhal sobre as palmas das mãos abertas, sorriu.



A Harpa, de Manuel da Fonseca

Resumo

Luciano e Júlio jogavam ao berlinde e viram a Lena a correr estrada a baixo e ia a caminho da casa da madrinha.
Eles continuaram a jogar e por ela não ter falado com eles parou de jogar e ficou chateado porque gostava muito dela, mas Luciano, não namorava com ela porque não gostava da família dela.
Lena voltou a aparecer e foi ter com eles, mas Luciano magoado mandou-a embora, mas a avó dele obrigou-o a ir leva-la a casa, e obrigou-o a entrar na casa de Lena. Contrariado passou o tempo todo a ouvir a avó falar com o pai de Lena sofre o passado e sobre a família dele que tinha morrido toda.
Luciano começou a olhar para Lena, e para a casa, enquanto os pais dela e a sua avó falavam do passado.
A certa altura, o pai de Lena foi buscar uma caixa negra, e de lá tirou uma harpa e começou a toca-la, e Luciano começou a ouvir o pai de Lena tocar.
No dia seguinte foi da escola para casa e tirou de uma caixa um punhal que tinha sido do avô dele e meteu-o no bibe e saiu, encontrou no caminho Júlio que lhe perguntou se queria jogar, ele respondeu que não e foi ter com Lena e quando a encontrou deu-lhe o punhal para ela dar ao pai dela. E de seguida disse a Lena que gostava muito dela.



Estrutura

Exemplo de descrição: “Curvou-se, pôs o joelho em terra e apontou o berlinde”
Exemplo de narração: “Viu o pai de Lena levantar-se, ir a um canto e arrastar com um grande esforço uma enorme caixa preta que roçava pelo chão com um ruído gemebundo”
Personagens
Principal:
Lena e Júlio
Secundário: Luciano, pai de Lena e avó de Luciano
Composição das personagens
Personagem Plana:
Lena, Júlio e Avó de Luciano
Personagem Modelada: Luciano
Caracterização física: “cabelos claros” feita pelo narrador Heterocaracterização
Caracterização psicológica: A atitude do pai de Lena ao ir buscar e tocar a harpa revelam tristeza e saudade dos tempos passados
Espaço: “…no pó alvacento do largo”
“…pela primeira vez na casa da Lena”
Tempo: ”No outro dia…”
Narrador: Não participante heterodiegético
Trabalho realido por:
João Luís Tomé